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Sob toda aquela fofura e por trás da carinha de pidão, o cão é nada menos do que o assassino da vovó da Chapeuzinho Vermelho, vivendo sob seu telhado. Você provavelmente já ouviu isso: todo mundo que já teve de lidar com a insistência do bicho em espalhar as entranhas do sofá pela sala e foi pedir ajuda ao Dr. Google já ouviu isso. E já recebeu conselhos do tipo: você precisa mostrar quem manda. Bater o osso na mesa. Ser o macho alfa da alcateia. E talvez alimentá-lo só de carne crua, do jeito que Nosso Senhor Anúbis planejou.
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Um animal humanista
Talvez esse tratamento até consiga fazer Fido bater continência. Mas uma coisa ele não é: científico. Cachorro não é lobo. Além do que, lobos não são exatamente como se pensava. A ideia de que lobos tem coisas como “machos alfa” vem de um estudo da década de 40, baseado em lobos não aparentados, criados em cativeiro. Mas essa é a versão presídio da sociedade dos lobos. Quando os observamos na natureza, descobrimos que na verdade ele vivem em estruturas familiares e monogâmicas. Não tem alfas tão bem definidos na vida real, só papai e mamãe. As relações entre cães não são pura dominação: há muito de afeto ali.
Seu teimoso amigo é sim um orgulhoso membro da espécie Canis lupus, a mesma do lobo, mas da subespécie familiaris. Sabe quem também era uma subespécie? O Homem de Neandertal. (É um assunto polêmico – mas também tem quem classifique lobo e cachorro como espécies diferentes.)
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O cachorro não surgiu dos lobos iguais aos de hoje, mas provavelmente de uma subespécie extinta, que vivia na Ásia Central há 33 mil anos. Não sabemos exatamente como esse lobo se comportava, mas sabemos que ele teve uma ideia que nenhum outro lobo teve: se aproximar das pessoas de forma pacífica e roer os ossos de mamute que jogavam no canto da caverna.
Os humanos acharam… fofo, e toleraram a presença (ou talvez simplesmente tenham achado os cachorros gostosos, e não no sentido de quem alisa as dobras de um shar pei). A evolução fez seu trabalho e, em algumas gerações, os lobos humanistas foram se tornando mais dóceis e confiantes, tornando-se o primeiro animal doméstico. E isso sem muita intervenção humana: na verdade, eles domesticaram a si próprios.
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Evolução anabolizada
Quando os cachorros passaram a ser criados junto com as pessoas, elas decidiram tomar as rédeas da evolução (fale com uma vez tenebrosa: “brincar de deeeeus”). Selecionamos o que achamos mais interessante, criando as raças que existem hoje. Seleção artificial é seleção natural anabolizada: tornamos o cão a espécie com maior variação morfológica da Terra: o menor cachorro do mundo é 300 vezes menor que o maior. Eles tem hoje 1% de diferença genética para os lobos. O que é mais ou menos a mesma diferença que temos para o chimpanzé.
Nosso trabalho tornou os cães uma critura artificial, espécie de ciborgue de carne, osso e língua, feito sob medida para nós. Nenhum outro animal consegue interpretar a expressão corporal e tom de voz humanos com tanta eficiência – lobos simplesmente fogem ou ignoram as pessoas. Entre lobos, olhar nos olhos é uma expressão de agressividade – nos cães, como em humanos, é comunicar um sentimento. Também nenhum ser na natureza entende o gesto humano de apontar. E, por fim, o sistema digestivo dos cachorros se adaptou (principalmente na flora intestinal) para comer o que estava no cardápio humano. E não comemos coelhos crus. Cachorros são hoje onívoros, e uma dieta com excesso de proteína pode causar até falência renal.
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Anarquia na sala de estar
Por fim, a grande questão: quem é você na sociedade canina? Por um deslize no romantismo da Idade da Pedra, fizemos os cães deixarem de ser monogâmicos. Então nem dá pra comparar mais com a sociedade dos lobos. Pelo que sabemos de como cães abandonados se comportam, eles vivem no esquema fission-fusion, sociedades flexíveis que se integram e se desintegram, com bilús saindo e entrando toda a hora. E sem líderes. Enfim, bem diferente do que dizem os gurus que encantam cães.
Como deve ter desconfiado quem passou pelo incidente do sofá, cachorros são basicamente anarquistas. Você não é um sargento, mas aquele amigão no qual ele vive encostado, filando o sofá e geladeira. É por isso que cada dia mais ganha força a ideia de reforço positivo. Quer algo do totó? Dê a ele algo que ele quer. Ganhando o respeito no biscoito, não no grito.
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